segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Quando eu morrer...






Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

Maria do Rosário Pedreira





sábado, 2 de novembro de 2013

Diz o meu nome...







Diz o meu nome

pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com suavidade
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome.

Mia Couto



sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A tua nudez inquieta-me.








Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra. 
Como um temporal. Ou como 
certas palavras ainda não inventadas, 
certas posições na guitarra 
que o tocador não conhecia.

A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo 
para um lado misterioso e frágil. 
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe 
contorno, peso. Destrói o meu corpo. 

A tua nudez é uma violência 
suave, um campo batido pela brisa 
no mês de Janeiro quando sobem as flores 
pelo ventre da terra fecundada. 
Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas 
com o vocabulário da tua nudez. 

Tenho «um pensamento despido»; 
maturação; altas combustões. 
De mão dada contigo entro por mim dentro 
como em outros tempos na piscina 
os leprosos cheios de esperança. 

E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete 
que lanço com mão tremente desastrada 
para rebentar e encher a minha carne 
de transparência. 

Sete dias ao longo da semana, 
trinta dias enquanto dura um mês 
eu ando corajoso e sem disfarce, 
iluminado, certo, harmonioso. 
E outras vezes sucede que estou: inquieto. 
Frágil. 
Violentado. 
Para que eu me construa de novo 
a tua nudez bascula-me os alicerces. 

Fernando Assis Pacheco 
in A Musa Irregular



quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Primeiro a tua mão sobre o meu seio...










Primeiro a tua mão sobre o meu seio.

Depois o pé - o meu - sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.



É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.



O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.



Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama



Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.



Rosa Lobato Faria



.

.


Related Posts with Thumbnails

Número total de visualizações de páginas