segunda-feira, 4 de junho de 2018

Às vezes...




Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.

__Sophia de Mello Breyner Andresen.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Tu és a esperança a madrugada.




Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.

Eugénio de Andrade



terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Natais e Outras coisas que tais








NATAIS E OUTRAS COISAS QUE TAIS (Amarantinos)
Autor: Costa Carvalho

Três meses antes do Natal, um calvário! Abriam as aulas e abriam-se, lá em casa, as garrafas de óleo de fígado de bacalhau. Que horror! Ao mesmo tempo, os papelinhos, uma coisa negra e untuosa, com que o Sr. Costa da Farmácia, esfrega que esfrega, nos punha as nádegas a arder, para que a mezinha entrasse bem na pele. Na pele, na carne e no osso, porque saíamos a manquetear até ao nosso "triângulo das barbudas"(casa-escola-terreiro de S. Pedro). O primeiro a apiedar-se de mim e de meus irmãos era o "Palhinhas": - Coitadinhos dos meninos! O "Palhinhas" era um frequentador assíduo da cadeia, separada da nossa casa apenas por uma escadaria até ao último andar. Quantos e quão graves pecados deveriam ser os nossos, para tão duras provações! O certo é que sem isso, o Menino Jesus não traria prendas, Por Ele - e por nós! - estávamos dispostos a tudo. Até a não fazermos batota na pincha, soprando o pataco para ficar ao alcance do nosso furco; a não esmigalharmos os bugalhos dos meninos pobres com pesadas esferas de rolamento, que o "Palhinhas" desencantava não se sabia onde, e nos dava; e a não a termos sempre à mão um pião de bico de prego, para as nicas no muro da Escola do lado da casa do Sr. Manuelzinho, "keeper" do Amarante, nesses tempos em que vedetas como Celso eram raptadas por clubes do Porto. O pião de bico redondo e dourado, lindo como canário laranja, esse, era para os campeonatos de quem apanhasse melhor à unha; que nunca para jogos de roda e muito menos para os de faniqueira atrás! "Cuidado com as canelas! Mas que grande besta! Olha p'ró que me fizeste. Eu já t'esmoco!". Nesse "triângulo das barbudas" tudo acontecia: se não houvesse os "ceguinhos" da literatura de cordel cantando as desgraças da "desgraçadinha" com direito a foto e versalhada nas folhas volantes a 2 centavos cada, nunca faltavam os robertos, o delírio da ganapada que, ao outro dia, com duas placas metálicas embrulhadas em fita de nastro reproduzia as cenas para os presos da enxovia, no rés-do-chão, que o mesmo é dizer à altura da nossa cabeça. Nada de tempos mortos! Tínhamos a tropa, financiada pelo Dr. Falcão e pela D. Zezinha Carvalhal, o "C.F. Os Sampedrenses" com bolas de couro cujo pipo saltava ao fim de três jogos, e, também, a maldade bastante para enfurecer o Ciranda. Quem as pagava eram as galinhas! Isto sem falar do temido Arturinho Pasta mais as suas zaragatas com S. Pedro e S. Paulo. Tudo baril! O tempo passava, o óleo de fígado de bacalhau estava engolido, a obrigatória sopa de nabos comida com muitos vómitos... e o Natal chegava. Com ele, o Menino Jesus. no dia 25 de Dezembro, dia dos anos da mamã.. Acabada a ceia, a Laura e a Sameiro ajeitavam a mesa com pires cheios de pinhões, figos secos, nozes e avelãs, sem esquecerem as travessas da aletria, filhós, rabanadas mais o bolo-rei. E um prato limpo com o respectivos talheres, não fosse o Menino Jesus querer petiscar. Avivavam-se as escalfetas e nós íamos a correr buscar o sapato para as prendas. Será que...? Tormentosas noites essas cheias de medos que, no entanto, não chegavam para amedrontar o sono pesado em que caíamos. Despertávamos aí pelas 9 horas. Bocejando, coçando a cabeça, trémulos de emoção, corríamos para a sala. Os pais já lá estavam. Abriam as portadas das janelas. Como que vinda directamente do Presépio, uma luz cegava-nos e escancarava-nos a boca de espanto e de risadinhas tontas, tantas eram as prendas, tão maravilhoso era o sorriso dos pais, garantindo-nos: «Mereceis tudo, sois bons meninos!» Que milagre aquele, e com que alma agradecida íamos, depois, à missa das 11, a S. Gonçalo! Assistíamos mais com os olhos no presépio do Sr. Aires do que no sumptuoso altar-mor. E não era lá, deitadinho em palhas e todo carinha laroca, que o Menino Jesus estava? Então...



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